sábado, 9 de junho de 2018

Ditadura para quem?

Você se diverte com as besteiras que falo e escrevo, né? Gosta da forma como te faço rir com meu humor ácido e até diz que fico bonitinho sorrindo na foto que posto.

Pois então, pense aí que, num dia qualquer, voltando do trabalho, ou indo para o cinema, eu serei parado por uns homens fardados. Eles não dirão muita coisa, apenas colocarão uma arma na minha cabeça e pedirão que eu os siga.

Como não sou bobo nem nada, obedecerei, embora já saiba o que irá acontecer. Eles vão me jogar num carro, provavelmente terão vestido um capuz na minha cara, ou terão me dado uma coronhada na cabeça, quem sabe? Darão umas voltas pela cidade para me confundir e, sem que eu saiba onde estou, irão me levar para um porão qualquer.

Certamente eu, esse sujeito divertido, sarcástico, de riso frouxo, estarei assustado, apavorado eu diria, no momento em que eles me amarrarem numa cadeira e me derem o primeiro soco. No estômago, claro. Não vão quebrar meus dentes de imediato. Vão me querer consciente.

Em vez de algum comentário irônico, destes que faço e que te divertem tanto, da minha boca sairá um grito de dor. Eu sei que irá acontecer. Eles terão visto minhas redes sociais, sabem que sou contra o sistema comandado por eles.

Vão me fazer algumas perguntas, muitas das quais tentarei não responder. Eles sentirão raiva, amarrarão nos meus pés e mãos um fio elétrico desencapado e ligarão a tomada. Vai doer. Vai doer pra caralho!

Seu amiguinho aqui vai estar em apuros! Vai estar numa enrascada fudida!

Você já me viu chorando? Acho que não. Sou bem humorado demais. Você me vê resmungando, mas até minha ranzinzice te faz achar graça. Pois bem, nesse dia, é bastante provável que eu esteja chorando quando esfregarem sal e areia dentro meus olhos. Você gosta dos meus olhos, eu sei. Você já disse. Mas, não os reconheceria depois de uma sessão de tortura da qual eu sairei provavelmente cego.

Sabe essas fotos bonitinhas que eu faço e que você sempre curte? Não farei mais. Em vez de beleza no mundo, estes olhos estarão vendo um monte de soldados com cassetetes nas mãos. Terão dilacerado minha mandíbula, não sei se com socos, pontapés ou com as armas em punho. Só sei que terei sangue na boca no momento em que cuspir os dentes. Esquece esse sorriso que você se acostumou a ver.

Nunca fui muito medroso, você sabe. Mas, neste porão, depois de ficar pendurado de cabeça para baixo por horas a fio, depois de afundarem minha cabeça em água gelada várias vezes, depois de ter minhas unhas arrancadas, meus dentes quebrados e alguns ossos fraturados, eu estarei desesperado. Como você nunca ousou imaginar que eu algum dia estaria. Nem de perto eu estarei lembrando este cara que faz graça com tudo.
Estarei com medo quando me levarem para um canto qualquer de alguma mata e atirarem em mim.

E quando você não tiver mais notícias minhas, sem saber se estarei morto ou vivo, sentir-se-á triste. Sentirá saudades da forma como eu te fazia rir. E não conseguirá acreditar quando se der conta do que fizeram comigo e de como foram minhas últimas horas de vida. Irá maldizer a violência com que os homens terão agido. Irá se perguntar por que terão feito isso comigo. E carregará para sempre a culpa por ter sido conivente com a ascensão dos militares ao governo.

Perceberá que é muito fácil no seu mundo lidar com notícias vindas pela TV, de gente distante que sofreu nas mãos da ditadura. Mas, notará que será diferente quando lembrar de mim, tão perto de você, contando piada, compartilhando memes idiotas e tornando seu dia mais divertido e engraçado.

Pareceu aterrorizante imaginar o quadro aqui ilustrado, não foi? Que bom, a intenção é essa. Quando for primo, sobrinho, tio, irmão, filho, amigo dos outros, como aquelas notícias incertas que te chegam pela internet ou pelos jornais, você supera. Mas, quando for com seu primo, seu sobrinho, seu tio, seu irmão, seu filho, seu amigo, como eu sou, não adiantará se lamentar. Foi você quem escolheu a intervenção militar. Agora aceite. E torça muito para que não peguem você.

sexta-feira, 8 de junho de 2018

Intervalo

Intervalo

Costuradas como colcha de retalhos,
Faz-se a vida de amargura em amargura.
Um mosaico de estreitas aberturas:
Interregno chamado felicidade.
Finitude que persiste entre a fronteira
da dor com a dor, e que muitos nomeiam,
com tolice e singeleza, eterno amor.

Mas, qual eterno! Amor é bem, e como tal
Não há de resistir às intempéries!
Feito rocha, que do mar bebe água e sal,
Esfarela-se em areia que o vento leva...

Queiram os deuses, em meu suspiro derradeiro,
quando, para sempre a luz nos olhos se apagar
esteja eu imerso num ínterim de júbilo,
que ligeiro passa qual piscar de pálpebras,
decote diminuto na colcha da vida,
elo de união entre consternaçōes.

Quando a morte a meu encontro caminhar,
esteja eu vivendo o intervalo,
no respiro entre tantos dissabores.
Que me venha ao fim de um, antes do outro
- inerente consequência do viver -
que me ache com entrelaçadas mãos,
sorrisos cúmplices, abraços calorosos,
dentro daquilo que é finito: o tal amor.

Para levar comigo à eternidade
A ilusão de que o finito é imortal:
De que o amor durou ao fim da existência.

Gustavo Carneiro de Oliveira
Rio de Janeiro, 08 de junho de 2018.

terça-feira, 6 de março de 2018

Singeleza

Singeleza

Na hora do dia que mais amo,
Embriagado com a droga que amo,
Pus a tocar uma música que amo
De um cantor que amo.
Devorei uma comida que amo,
Sucedida de um doce que amo.
E, somente por haver tanto amor em tudo,
Foi que, então, lembrei-me de ti.

Rio, 06/03/2018