quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Vai ter suburbano, sim!

Aos nove anos, saí do Espírito Santo, onde nasci, para morar na Bahia. Quando dizia aos meus colegas que iria embora para a Bahia, a reação deles e a minha era sempre de pena e de autocomiseração. Afinal, eu iria para a Bahia, aquele lugar feio, subdesenvolvido, com terra árida e cuja população tinha um alto índice de pessoas negras. Era de dar pena uma criança branca e de olhos claros, acostumada a uma terra civilizada, repleta de outras pessoas brancas e de olhos claros, ter, de repente, que enfrentar aquela realidade nova e assustadora.

Assim, segui rumo ao meu exílio para o Nordeste do Brasil, lugar onde, antes mesmo de lá pisar, fui ensinado a odiar ou do qual me compadecer. Vivi meu preconceito e sofri por causa dele. Uma espécie de banzo me acompanhou por eu ter sido obrigado a lidar com aquela gente inferior a tudo aquilo que eu era.

Era de dar pena. Não, não a situação do menino branco, capixaba e mimado, que achava assustador ter que enfrentar os bárbaros nordestinos e inferiores. Mas, o tipo de criança mesquinha e preconceituosa que ensinaram este moleque a ser.

Um dia eu cresci e me dei conta de que era baiano, era fascinado pela cultura negra, deslumbrado com a capoeira, os atabaques, a culinária típica, era apaixonado pelo sertão de solo e feições rachadas e aquelas pessoas simples, cheias de histórias para contar. Estava livre do garoto antipático e preconceituoso que um dia fui e me sentindo grato por ter tido contato com culturas diferentes daquelas em que fui criado.

Aprendi a simpatizar com a pobreza, com o subúrbio, com negritude, com o sotaque carregado, com o som das periferias, com a batalha das pessoas que carregam latas d'água na cabeça ou cestas de salgados para vender na praia. E qual não foi minha surpresa quando me dei conta de que... Epa... Meu pai é negro, minha avó era lavadeira e eu nunca fui tão branco assim; ah, e sempre fui pobre.

Mas, nunca deixei de lado meu gosto tido por elitizado. Quando passei a curtir samba e ópera com a mesma intensidade, literatura de cordel e poesia simbolista com a mesma emoção, ballet e passinho com o mesmo encantamento, percebi que eu podia transitar livremente entre todos os mundos. E não trazer qualquer tipo de rótulo era libertador.

Infelizmente, ao longo da vida, convivi com muitos "antigos eus", gente que carrega tanto preconceito , que não consegue enxergar a própria  pequenez diante de um universo tão diversificado.

Lidar com tudo que nunca foi meu fez de mim um possuidor de tudo. Longe de mim carregar um discurso demagogo e despeitado, desdenhando do que não posso ainda alcançar, para supervalorizar aquilo que é costumeiramente menosprezado. Sim, eu adoro a Zona Sul carioca e adoraria morar em uma cobertura gigantesca na Vieira Souto, de frente para o mar. Sim, adoro restaurantes caros e requintados, e quem me dera eu pudesse frequentá-los diariamente. Adoro assistir a concertos de música clássica no Theatro Municipal e quem me dera não tivesse vizinhos ouvindo som alto e atrapalhando meu sossego em casa quando quero o silêncio.

Mas, gostar de tudo isto não me impediu de morar no subúrbio do Rio e saber aproveitar o que esta gente pobre, negra e de baixa instrução tem a oferecer de melhor! E põe "de melhor" nisso! Frequentador assíduo da praia de Ipanema até uns anos atrás, não senti pena de mim mesmo quando tive de me mudar para a Baixada Fluminense, como sentia vinte e tantos atrás quando saí do Espírito Santo para a Bahia. Ainda acho que Nova Iguaçu possui os melhores restaurantes com os melhores atendimentos da região.

Mas, tudo isso não me impediu também de encarar as pessoas chocadas, estupefatas, estarrecidas e abismadas, repletas de um deprimente misto de asco, medo e piedade porque em dado momento eu precisei ou optei por frequentar lugares tidos como abaixo de suas condições. Cresci lidando com isto. Do Espírito Santo fui para a Bahia. De uma cidade à beira-mar, fui cursar faculdade e morar numa favela à beira da estrada. Ao vir para o Rio, saí de um bairro perto da praia (mas que também não era Zona Sul e exigia a travessia de um túnel para chegar nela) para outro no subúrbio, de onde me afastei mais para ir para a Baixada, até voltar para o subúrbio, onde vivo atualmente. E todas essas fases sempre acompanhadas de olhares e questionamentos, comentários preconceituosos e discriminativos de muita gente à minha volta.

Quando deixei de escolher Ipanema e Leme, substituindo-os por Madureira e Inhaúma, passei a ser julgado. Lidar com gente preconceituosa nunca foi surpreendente, diante da trajetória que vivi e narrei acima. Mas, sempre foi imensamente desagradável. Dias atrás, exaltei o Parque Madureira, minha opção no verão deste ano, e fui surpreendido pela pergunta de um morador de Campo Grande, bairro da Zona Oeste, imensamente mais longe e ainda mais carente que o subúrbio da Zona Norte:

"- Parque Madureira? Mas, lá não tem muito favelado?"

Depois de revirar meus olhos verticalmente em quase 180 graus, sorri e respondi, seguindo-se o diálogo:

 - Óbvio que tem! Madureira é uma favela. E eu, que moro aos pés do Morro do Dezoito, na Piedade, sou favelado também. Eu estava lá. Como eu, muitos outros.
 - Você não é favelado! Você é civilizado..
 - Não sou? Claro que sou! E você também, né? Você mora em Inhoaíba, Campo Grande!
 - Não. Favelado, quero dizer, bandidinho, baderneiro, você sabe, né?
 - Sim, sei. Infelizmente os conceitos se mesclam. Favelado agora virou sinônimo de bandido. Preto, pobre, suburbano, tudo isso é sinônimo de bagunça, confusão, baixaria. Não, o Parque Madureira é um dos lugares mais incríveis que conheço aqui no Rio! Tem preto, tem pobre, tem favelado, tem funkeiro, tem tia gorda gritando com Cleudismar e o Cleydson... Tem tudo isso! E por isso mesmo é incrível. Porque nos coloca em contato com gente de verdade, de todo tipo, de todo modelo, de toda variedade...

Infelizmente esse pensamento ridículo, prevalente em mentes pouco evoluídas, se multiplica a cada geração que perpetua a (des)educação que recebeu.

Nesta semana, ouvi de um morador da Tijuca, bairro de classe média da Zona Norte, a mesma Zona Norte onde também se encontra Madureira, comentários que não me despertaram menos que asco e desprezo, sobre a área de lazer que escolhi: "(...) Mas, vai para a porra de Madureira!? Você tá me debochando, adoro você, mas MADUREIRA? (...) ele é muito fofo para ir para Madureira. (..) Comer pastel em MADUREIRA?!"

Sim, Madureira! Se pessoas pequenas não sabem abrir os olhos para o que foge de sua zona de conforto e não conseguem aproveitar o que há de melhor em cada uma das regiões além das suas, só lamento pela redução de seus horizontes, e pela limitação do seu prazer.

Felizmente, quando criança fui morar aos nove anos na Bahia, fui apresentado àquela gente então estranha, naquela terra seca e encarquilhada, que descobri, tempos depois, que era muito mais chuvosa e próspera que muitos outros lugares por onde andei. Conheci a capoeira e o candomblé, a simplicidade sertaneja e ostentação das praias mais belas em que já pisei, o sotaque carregado e o vocabulário estranho que substitui "canjica" por "mungunzá". Felizmente, quando adulto, conheci Madureira e suas pretas roliças e bundudas, seus feirantes, suas frequentadoras de baile charme, seus homens de pele curtida pelo sol escaldante, a algazarra de suas crianças, as Velhas Guardas de suas escolas de samba, e seu parque.

Por tudo isso, se eu tiver mesmo de escolher entre o preto favelado do subúrbio e o burguesinho tijucano metido à besta, não pensarei duas vezes antes de fazer minha opção: Madureira, aí vou eu.

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