quinta-feira, 11 de julho de 2013

Quem representa o quê?

Originalmente escrito em 10 de julho de 2013.
O texto já estava pronto quando o Senado rejeitou a emenda proposta pela Câmara dos Deputados.

Nietzsche disse que sem música, a vida seria um erro. E, sem pretender soar apocalíptico, parece que o Brasil começa dar seus primeiros passos em direção a esta realidade. Na última semana, o Plenário do Senado Federal aprovou a já famigerada PLS 129 - na origem, Projeto de Lei 5.901/13, que modifica a Lei 9.610/98, que trata sobre a arrecadação e distribuição dos direitos autorais por suas mais diversas modalidades de utilização. O projeto de lei envolve uma série de medidas que visa a aumentar a transparência do ECAD, entidade única legitimada a arrecadar e distribuir os direitos autorais e aqueles que lhe são conexos, pela execução pública de obras musicais, literomusicais e fonogramas.
 
Não pretendo aqui advogar a favor do ECAD, de quem sou empregado. Soaria até bastante óbvio que eu, na qualidade de seu advogado, destrinchasse loas à sua atuação, ressaltando suas virtudes e escondendo suas mazelas, mas não é esta a proposta deste texto. Aliás, como empregado do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, conheço de perto - ou melhor, de dentro - suas práticas trabalhistas e se minha proposta fosse escrever levando-as em consideração, talvez o viés deste texto fosse bem menos engrandecedor.
 
No entanto, concedendo a César o que lhe é de direito, é preciso avaliar com olhos de quem conhece a atuação da entidade nas práticas de arrecadar de usuários e distribuir a titulares valores dos direitos autorais. E dentro desta perspectiva, o que se vê é um desmando do Congresso Nacional. Não fosse o bastante aprovar um projeto de lei que estatiza direitos de natureza ontologicamente privada, retirando cada vez mais de seus titulares a disponibilidade sobre os mesmos, emendou-o para que eventos beneficentes e filantrópicos fossem isentados da arrecadação de direitos autorais pelas obras musicais neles utilizadas e é este o texto que aguarda votação na Câmara dos Deputados.
 
Nada contra medidas que proponham humanizar as pessoas e tornar o mundo um lugar melhor, possibilitando uma coexistência harmoniosa e pacífica, como preconizada por Rousseau e por Thomas Morus. Mas obrigá-las a isto se afigura uma violação tão grave e perigosa à liberdade e à propriedade quanto qualquer outra.
 
É tentador supor em um primeiro momento que obrigar compositores e titulares de direitos autorais e conexos a cedê-los é colocar em prática da forma mais absoluta a função social da propriedade e o direito de acesso à cultura. Porém, uma análise mais profunda pode revelar, em longo prazo, um perigo até então despercebido: o desserviço à cultura pelo desestímulo à produção artística por parte de compositores que receberão cada vez menos a contraprestação do seu trabalho intelectual.
 
O ECAD tem figurado frequentemente como bode expiatório perante diversos segmentos da sociedade, muitas vezes julgado por gente que desconhece sua atuação e ignora os processos que envolvem o repasse de dinheiro arrecadado aos seus verdadeiros proprietários, os titulares a quem representa. Nunca ouvi ninguém falar bem de uma entidade que cobra. Seja de que natureza for. Não falam bem da Companhia de Água e Esgoto, não falam bem da Companhia de Luz, mesmo cientes do quão necessárias são a água e a eletricidade. Como esperar diferente de quem promove cobrança sobre a música tocada? No entanto, é preciso lembrar que o ECAD não age por si mesmo, mas por poderes conferidos pelos próprios titulares de direitos autorais e conexos.
 
Quando o Governo estipula que será criado um órgão próprio para controlar os preços praticados pelo ECAD, não é este quem sofre maior prejuízo. É a comunidade artística. É gente que sobrevive às custas do seu trabalho intelectual, gente que produz música. Esta mesma sem a qual, como dito lá em cima, Nietzsche garantiu que a vida seria um erro. Fora que a experiência já revelou que uma entidade governamental gerindo direitos privados, o extinto CNDA, funcionou apenas como um braço do Estado interventor ditatorial, não se coadunando com a livre iniciativa que rege o mercado dentro de uma Democracia.
 
Quando o Governo determina em que ocasiões o ECAD pode ou não cobrar pela execução musical pública, está dizendo que não cabe ao artista decidir seu próprio valor, bem como não lhe cabe dispor plenamente sobre sua própria criação. O que me parece evidente é que boa parte da classe artística deixará de produzir e isto levará inevitavelmente a uma derrocada cultural, ao empobrecimento em vez de fomento.
 
Não estou aqui pregando a atuação livre e isenta de regras pelo ECAD. Não vejo como ruins as mudança de algumas diretrizes já obsoletas da Lei 9.610/98. Vejo com bons olhos a fiscalização do ECAD, visão que não se estende à intervenção desmedida como a que isenta de pagamento de direitos autorais os eventos filantrópicos. Não cabe ao Estado dizer quando o ente privado deve ou não incentivar a beneficência. Antes, deveria o Estado propiciar incentivos aos artistas que cedessem seus direitos autorais à entidades beneficentes. A lei deveria favorecer os titulares, não os usuários de música.
 
O que surpreende é testemunhar ícones de resistência política, como Chico, Gil e Caetano, de braços dados a gente como Renan Calheiros, criminoso absolutamente mais nocivo à sociedade que qualquer boleto de cobrança emitido pelo ECAD, defendendo uma lei que prejudica mais que beneficia a classe da qual fazem parte. Músicos inteligentes, intelectuais que outrora lutaram pelo direito de livre manifestação de pensamento e agora parecem rendidos a um sistema falho que demanda maior discussão.
 
O que vejo é uma lei ser votada sem o necessário debate e sem a necessária compreensão de como o ECAD realmente atua, sendo apoiada por um grupo de artistas - mestres em sua arte de fazer música, mas talvez não plenamente esclarecidos sobre o funcionamento da gestão coletiva de direitos autorais. O que vejo é um escritório arrecadador e distribuidor recebendo à sua revelia determinações legais impostas qualquer jeito, por um Congresso ignorante, para não dizer oportunista - considerando-se o grande número de rádios e TVs de propriedade de Deputados e Senadores, usuários interessadíssimos em obstaculizar a arrecadação de direitos autorais.
 
Belchior que me perdoe, mas nossos ídolos não são mais os mesmos. E o ECAD pode até não me representar. Mas, novamente, a César o que é de César: fala com a voz de milhares de titulares de direitos autorais nacionais e estrangeiros.

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