terça-feira, 27 de abril de 2010

Viola Urbana

(originalmente publicado em)
Rio de Janeiro, quinta-feira, 20 de agosto de 2009.

Sempre fui garoto de cidade, adepto a shopping centers e boates, acostumado a buzinas e sirenes. Embora tenha vivido a maior parte da minha vida em cidades pequenas, ainda assim eram cidades. E onde nasci não era muito diferente. Cidade bonita, ruas largas, carros passando, a BR 101 cortando tudo pelo meio, ônibus cheios, notícias de violência... Mas ali era uma cidade nova. Recém emancipada, e com pontos de infraestrutura ainda em construção... Isso fazia com que em algumas centenas de metros após o "centrão", podíamos visualizar algumas ruas sem calçamento, algumas casas de madeira, com cerquinhas. Do interior dessas casinhas, via-se a autoestrada, onde os carros passavam em ritmos loucos, e esse contraste era bonito. Lembro que nos domingos de manhã, minha mãe levava a mim e a minhas irmãs para uma dessas casinhas, construídas com tábua, de assoalho muito bem polido, e cortinas de chita com estampas de flores, demonstrando um gosto extremamente duvidoso da proprietária, a minha avó. Eu acordava resmungando, pois, estudante do turno matutino, achava o sábado e o domingo um tempo exíguo demais para ser retirado da cama cedo. Nunca soube o que era acordar na roça e tomar um leite fresquinho, ainda morno, da vaca ordenhada minutos antes. Mas, talvez por respirar o ar de um passado não muito distante, quando todas aquelas ruas pavimentadas de Linhares ainda eram caminhos talhados a facão, aqueles domingos de manhã na casa da minha avó tinham um gostinho especial de fazenda. O café, cujo pó era comprado na padaria (que ficava duas ruas além, onde já havia calçamento e passavam carros), cheirava forte, e o bolinho de chuva, ou mesmo o improvisado "engasga-gato", como chamávamos uma mistura de ovo, farinha de trigo e açúcar, frito em óleo bem quente, que só a minha avó sabia fazer, abria o nosso apetite (meu, das minhas irmãs e dos primos que também se reuniam por ali). Algumas vezes, a TV era ligada, com a criançada ansiosa esperando por algum desenho animado, e frustrada por ver bois e cabras e milharais em alguma edição do "Globo Rural"... Esse menino virou gente grande e decidiu viver em uma metrópole, devendo-se repetir, entretanto, que jamais viveu em zona rural. Mas sempre sentiu um tipo de nostalgia esquisita quando ouvia uma violinha bem tocada. Nessas horas minha mente viajava no tempo, e por mais que eu tentasse lembrar de um dia acordando em um recinto caipira, não conseguia. E então, a saudade aumenta, fica dolorida, porque é fácil sentir saudade do que se viveu, e ter a lembrança de um momento que realmente fez parte de sua vida. Mas saudade do que nunca se teve é difícil administrar, porque a gente tem que fantasiar, inclusive o sentimento que teria se tivesse sido!
Dispensando as descrições objetivas, limito-me às emoções. E o que posso dizer de um show, com gosto de bolinho de chuva e café forte coado em pano de prato? O que dizer de uma apresentação que me fez esquecer que eu estava em plena Zona Sul carioca, remetendo-me àquela roça em que nunca morei e que talvez tenha ficado gravada na minha memória somente por causa do Globo Rural visto na TV?
Momentos marcantes, melodias intensas, público empolgado... Não sou crítico de música, e sequer toco qualquer instrumento, tampouco violão. Assim, não me sinto gabaritado para falar nada da técnica. Mas sou emotivo, e posso bem falar sobre os sentimentos de saudade trazidos com as melodias dedillhadas pelo maestro, como a linda citação aos Beatles, mediante os curtos acordes de "Norwegian Wood", que sempre conseguem me arrepiar!
Posso falar sobre as notinhas desafinadas da Nair de Cândia, que embora (ou talvez por isso mesmo) fora do tom, conseguiram me fazer viajar por caminhos remotos, que terminavam sempre em uma grande porteira, com acesso a sabe-se lá que paragens! E mesmo caminhando cada vez mais para longe das igrejas, a presença da Ave Maria Bethânia, fez com eu me sentisse pequeno, naquele momento de reverência e sobriedade para o qual não há palavras que descrevam. O mesmo para toda a Bahia trazida na cuia de um berimbau!
Foi um show que deveria ter acontecido! E para quem não o viu, só lamento!
Mas, marcante mesmo foi a senhorinha, ao ver durante os aplausos, Maria Bethânia já com roupinha de casa (e seu tradicional coque no cabelo), calçando um sapatinho vermelho, sair estarrecida nos corredores do Oi Casa Grande gritando em alto e bom tom: "Ainda bem que eu vivi para ver Maria Bethânia entrar no palco calçada. Agora já vi de tudo!". De fato, quem viu, viu.

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