sexta-feira, 23 de abril de 2010

Caminhões e Estradas

(originalmente publicado em)
Valença, domingo, 23 de julho de 2006

A cidade onde nasci é dividida ao meio pela BR-101. Às vezes, ainda tenho a sensação de que se eu der alguns passos rumo ao Sul, por esta estrada, em menos de 10 minutos avistarei paisagens familiares, que talvez, existiam só na minha infância! E veria logo o ponto de ônibus, próximo à minha casa, onde eu saltava sempre que chegava do colégio, na minha 4ª série...
Havia a Rua Xavantes, e do outro lado do quarteirão, paralela a ela havia a Guaicurus, em frente da qual havia um campo com algumas árvores, e lá estava, paralela, a BR-101. Apenas uma rua nos separava. Era ali! Depois da BR-101, havia apenas uma imensidão de pastos! A borda do meu universo era ali! Às vezes, havia campeonatos de motocross, naquelas pastagens. Eles modelavam pistas, rampas, poços de lama... E nas tardes de domingo, toda a Lagoa do Meio estava ali, de pé, recebendo na cara a poeira das motos. Via-se pouca coisa, mas o que importava? Era a oportunidade que eu tinha de cruzar aquelas cercas e adentrar nos limites do mundo! Não sei se eu seguisse pasto adentro onde eu ia sair. Sei apenas que o ocaso contemplado da casa do Anderson, meu vizinho da Rua Guaicurus, era um dos mais lindos que eu testemunhara. Não havia outros para comparar, mas quem ligava para os modelos? Era a minha casa. A casa do Anderson, o campinho com o ponto de ônibus e algumas árvores pequenas - arbustos, na realidade -, a BR-101, e os pastos, que se estendiam ao infinito, atrás dos quais o Sol se punha diariamente...
Mas o maior espetáculo acontecia na hora de dormir! Todas as noites, deitado na cama, minutos antes dos meus olhos se fecharem no escuro, para abrirem com o dia claro, eu ouvia os ruídos! Sempre! Diariamente! Eram roncos longos, de motores, de pneus largos que traziam sobre si a pesada carga das carretas! Soavam um pouco distantes, mas próximos o bastante para embalarem meu sono... Lembro-me de uma noite, na qual o sono custava a chegar. Alguém ouvia a Verônica Sabino cantando "Demais", e eu prestara atenção naquela melodia saudosista que falava do vento e da chuva, como veículos das lembranças. Instantaneamente, escutei o vai e vem das carretas de novo. Eu não sabia quem estava ouvindo Verônica Sabino! Na verdade, eu sequer sabia quem era Verônica Sabino! Mas gostei da música, imediatamente! Veículos para as lembranças... O que eu não podia imaginar, naquela noite escura e insone, era que eu viria um dia a ter meus próprios veículos de lembranças...
Vim para a Bahia. Sentia falta do pôr-do-sol nos limites do mundo que eu conhecia. E eu percebi que a BR-101 podia ser cruel, quando, rumo ao Norte, afastava-me daquela realidade simples, mas bela! Cresci, senti saudade dos meus amigos, dos meus colégios, da casa do Anderson, do ponto de ônibus, dos pastos, da casa da minha avó... Sentia saudade de tudo. Na minha adolescência descobri o nome daquela cantora. Também era tarde da noite, e eu estava sem sono, ouvindo alguma estação perdida de FM, e lá veio ela, a chuva trazida pelo vento fazendo-na se lembrar mais, e mais... E minutos depois, a voz grave do locutor anunciava a mim, que era hora de eu conhecer o nome da cantora e da música, que eu escutava desde pequeno! Você ouviu Verônica Sabino, "Demais". Nunca mais eu esqueceria os nomes. E eu sempre lembraria da primeira vez em que ouvi esta música! Uma criança, sequer entendia o que a letra queria dizer. Mas sempre associaria esta música à saudade, à noite, aos minutos que antecedem o sono... Só não sabia bem porque...
Até que eu cresci mais, e chegou a época de eu fazer vestibular. Eu nunca havia pisado em Feira de Santana, mas quando cheguei lá, senti imediatamente algo de familiar. Alguma coisa me dizia que eu teria pelo menos um momento inesquecível naquela cidade. E o momento não demorou a acontecer. Eu já estava instalado no pensionato - muito mal instalado, diga-se de passagem - e pensava em casa, e na prova que eu faria na manhã seguinte... A noite chegou e tive que dormir. Eu não ouvi mais a música. Mas havia uma auto-estrada tão perto do pensionato, que eu consegui distinguir no silêncio noturno os ruídos, até então esquecidos em algum poço na minha mente! Os caminhões iam e vinham! Havia mais de 10 anos que eu não ouvia! E por uns instantes eu tive a sensação de que se eu saísse do pensionato, abrisse a porta, veria a Rua Xavantes, olharia para o outro lado e veria a Guaicurus e a BR-101. Eu jamais me esqueceria novamente daqueles barulhos! Não havia rádio ligado, mas na minha cabeça eu pude escutar "A chuva que este vento traz faz com que me lembre mais...". E só então eu saberia porque a música me dava tanta saudade!
Eu continuava sentindo falta da casa da minha avó, do ponto de ônibus, dos pastos, da casa do Anderson, do meu colégio... Mas não era só isso! Eu sentia falta da canção de ninar que os barulhos das carretas e caminhões faziam todas as noites enquanto eu adormecia! A pista que estava à frente do Conjunto Feira VI, onde estava localizado o pensionato, foi quem me avisou, sem que eu percebesse, que eu teria um momento inesquecível! Ao olhar para a estrada, registrei sem notar, que à noite os caminhões passariam por ali!
Lembrei-me então de quando eu era guri. E lembrei porque eu sempre prestava atenção, no escuro do meu quarto, nos ruídos dos caminhões. Cada vez que um deles passava pela BR-101 eu sabia. Ali estava um carro grande, vindo de algum lugar, e indo para outro lugar! Era a transitoriedade do "vrummm" que me fazia refletir. Quando a carreta passava, eu me perguntava quem a estaria guiando. Eu me perguntava de onde ela estaria vindo. Perguntava-me para onde ela iria. E então me batia na consciência, de que o Lagoa do Meio era o meu mundo, mas não era o único mundo! Havia outros, os quais eu não conhecia! Era a certeza de que cada "vrummm" trazia consigo uma história, que eu ignorava! Dentro de cada boléia havia um sujeito, personagem de algum conto, habitante de algum lugar... E que se movia enquanto, no meu mundo, todos estavam se preparando para dormir!
Anos depois de Feira de Santana, já na Terra do Cacau, tive oportunidade de morar num prédio em frente a uma rodovia... E enquanto todos reclamavam do barulho dos caminhões na hora de dormir, eu pensava em todos os anos da minha vida em que dormi longe daqueles ruídos! Pensava que eu não tinha como me incomodar com o barulho, quando criança, já que eu não conhecia noites sem ele! Mas depois, constatei que havia conhecido noites silenciosas, e muitas delas me haviam sido dolorosas! Realmente, quando todos reclamavam, eu não me incomodava com o "vrummm"...
Hoje já entendo a letra da Verônica Sabino. Hoje já sei que eu a associei aos caminhões, por isso mesmo antes de eu compreender sua letra, eu sentia saudades sempre que a escutava. Hoje sei que há mesmo outros mundos, e que cada motorista de cada caminhão tem a sua história, e que algumas delas eu poderei algum dia descobrir, ou mesmo nelas adentrar, mas que outras nunca farão parte de mim. Hoje conheço outros crepúsculos e sei que cada um tem a sua particularidade, sendo todos lindos, independentemente de o Sol ir dormir num campo aberto, ou dentro de um rio de águas escuras... Mas o que não sei até hoje - e gostaria muito de descobrir - é para onde as pastagens levariam se eu seguisse rumo ao lugar onde o Sol se punha...

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